A brincadeira
é livre!
Não faz sentido empregá-la com
objetivos pedagógicos, tampouco
o brincar deve se limitar à escola
//Por Por Marcos Garcia Neira*
Há quem diga que brincar é uma prática exclusiva das crianças. Puro
engano. A brincadeira também é uma atividade comum entre os adultos. Quantas
vezes não ouvimos alguém se desculpar, dizendo: “Estou só brincando” ou “foi de
brincadeira”. Além disso, conforme indicam estudos recentes, o hábito de
brincar tem crescido entre homens e mulheres, que, por mera distração ou de
modo consciente, preenchem as horas vagas brincando nos videogames,
computadores, celulares ou smartphones.
Brincar foi uma prática bastante presente entre os adultos até a
Revolução Industrial, ocasião em que as pessoas, controladas, confinadas e com
um tempo cada vez menor para descansar, viram-se obrigadas a abandonar essa
prática cultural, que perdeu seu status e passou a ser vista como perda de
tempo. Não por acaso, na mesma época, a infância foi tomada como fase
preparatória e as crianças foram definitivamente segregadas das ocupações dos
adultos.
Num primeiro momento esses significados circularam entre a burguesia
urbana e, mais tarde, se estenderam aos demais setores da população. Obter o
sustento por meio do trabalho tornou-se uma incumbência dos adultos, enquanto
as crianças, restritas ao ambiente doméstico, passaram a brincar com objetos ou
situações que simulavam as obrigações laborais. A brincadeira transformou-se em
um modo de iniciar as novas gerações no conjunto de regras da sociedade mais
ampla. As meninas recorriam às brincadeiras de mamãe e bebê, já os meninos
brincavam de cavalgar e guerrear.
Um dos reflexos dessas transformações é facilmente percebido na história
do brinquedo. Até o século XVIII, eram construídos com o que sobrava das
carpintarias, oficinas e fabricantes de velas e compartilhados entre adultos e
crianças. O capitalismo viu na produção em massa um meio de aumentar seus
lucros, mudando completamente a cultura lúdica. Brinquedos foram inventados e
produzidos aos milhares. Alienadas do processo de criação, as crianças foram
transformadas em simples consumidoras.
A oferta de brinquedos padronizados reserva ao mercado o controle das
suas características e intenções. Para ficar apenas em um exemplo, pensemos por
um minuto no conhecido “Banco Imobiliário”. Que representações veicula? Quais
valores as crianças aprendem, enquanto adquirem propriedades imaginárias? O que
significa relacionar a vitória ao acúmulo de bens?
Sabemos que durante a brincadeira o sujeito constrói simbolicamente a
realidade e recria o existente. Não é apenas receptor do que acontece à sua
volta. Ele ressignifica o que vê, ouve e experimenta mediante o confronto entre
os elementos que acessa e o próprio patrimônio cultural. Sabemos que nem tudo é
assimilado imediatamente, também há resistência, negociação e reelaboração.
A questão é que a brincadeira criativa e imaginária, enquanto forma
infantil de conhecer o mundo, vem sendo ameaçada pelas representações
disseminadas pelas mídias. Os bonecos de super-heróis ou os video-
games inspirados em produções
televisivas demonstram que os significados do brincar são pautados
externamente.
A brincadeira é um fenômeno cultural que sintetiza os valores do grupo
no qual se desenvolve. É impossível apontar claramente onde, quando e como ela
surgiu. O certo é que pode ser encontrada em todos os grupos sociais. Sua
essência é a espontaneidade e, seu teor, a liberdade. A brincadeira não se
prende a amarras de nenhum tipo, inicia e termina quando seus participantes
assim o desejam. Tampouco resiste a imposições externas, pois os modos de
brincar podem ser criados e recriados a qualquer momento.
Tais pressupostos obrigam a rever o papel que algumas escolas atribuem
às brincadeiras. Não faz o menor sentido empregá-las com objetivos pedagógicos,
isto é, como estratégia para alcançar comportamentos desejáveis. Brincar é uma
atividade livre marcada por divertimento e alegria. Qualquer tentativa de
torná-la um “meio de ensino” eliminará seu aspecto lúdico. Nesse caso, não será
a criança a tomar a iniciativa do brincar. Sem a livre escolha e sem a
possibilidade real de decidir, não há brincadeira, pois o papel do brincante é
ocupado pelo professor que definiu os passos a serem dados.
Ademais, se a iniciativa da brincadeira for exterior, a criança,
provavelmente, ficará inibida, comprometendo o desenrolar das ações. Nem toda
brincadeira agrada aos infantes. Para que exista a liberdade do brincar, eles
devem poder recusar o que foi proposto ou escolher o que preferem. É preciso
considerar que o prazer no brincar depende do contexto cultural. Mas isso não
significa que os sujeitos não aprendam enquanto brincam.
Brincar pressupõe uma aprendizagem social. Aprendem-se formas,
vocabulário típico, regras, modos de atuar coerentes etc. É importante frisar
que a transmissão de um elemento cultural depende do contexto. A cultura da
brincadeira é um evento coletivo. Mantém-se e é transmitida por um grupo que se
autorregula, possui identificação própria e modo de organização específico.
Logo, a configuração social é essencial para compreender como e quais
brincadeiras são transmitidas. Grupos numerosos certamente possuem brincadeiras
diferentes daquelas praticadas com poucas pessoas. Regiões frias permitem
brincar de maneiras distintas daquelas que podem ser encontradas nas
localidades mais quentes.
Durante a apropriação, a cultura patrimonial exerce um papel
determinante na perpetuação do universo lúdico. Consequentemente, é na família,
sobretudo com os adultos, que as crianças aprendem a brincar. Em praticamente
todas as sociedades, as normas, habilidades e conceitos que fundamentam as
brincadeiras são partilhados inicialmente entre membros que possuem laços
parentais, onde há brincantes mais e menos experientes.
A maioria das famílias possui suas próprias brincadeiras. Não é exagero
dizer que passam “de pai para filho” ou, no mínimo, dos mais velhos para os
mais novos. Algumas atividades lúdicas permanecem durante muitos anos no
ambiente doméstico, outras sobrevivem apenas durante o período da infância. À
medida que as crianças crescem, as formas de brincar sofrem alterações. Quando
bem pequenas, são socializadas em brincadeiras pautadas na repetição de gestos,
músicas e enredos. Já maiores, com a ampliação dos recursos de interação e
diversificação das experiências culturais, o repertório de brincadeiras
aumenta.
No núcleo familiar, nem sempre os elementos básicos de transmissão da
cultura lúdica são cumpridos à risca: objetivos, técnicas, regras, quantidade
de participantes, funções, nível de habilidade, ambiente e materiais
necessários. Inúmeras adaptações são empregadas para garantir a ocorrência da
brincadeira. O afrouxamento das regras, por exemplo, é uma estratégia que
viabiliza a participação dos menores.
A forma como o parente mais experiente lida com o aprendiz facilita a
apropriação dos modos de brincar. Comumente, o auxílio facilita o desfrute
pleno da brincadeira. Em linhas gerais, aprender a brincar só é possível quando
os mais hábeis assim o permitem. A posição assumida pelo adulto-conhecedor
tende a ser mais ativa, dando direção à brincadeira, arbitrando, indicando
erros. A criança-aprendiz é costumeiramente mais passiva, observando, esperando
a decisão, ajudando. Todavia, quando se considera a dinâmica da apreensão da
cultura lúdica, a passividade infantil nada mais é do que uma estratégia para
aceitação e pertencimento, um modo sofisticado de se apropriar das práticas
familiares, a fim de fortalecer a própria identidade cultural. •
*Professor da Faculdade de Educação da USP e coordenador do Grupo de Pesquisas em Educação Física Escolar
Saiba mais
Livros
Brincadeira e Cultura: Viajando pelo Brasil que brinca, de Ana M.A.
Carvalho, Celina M.C. Magalhães; Fernando A.R. Pontes; Ilka D. Bichara (orgs.)
São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.
Práticas Corporais: Brincadeiras, danças, lutas, esportes e ginásticas, de Marcos Garcia
Neira. São Paulo: Melhoramentos, 2014. (no prelo).
Publicado na edição 60, de agosto de 2014
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