quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Matemática na Educação Infantil


Matemática na educação infantil
Katia Stocco Smole

A manutenção do interesse por matemática entre alunos de 4 e 5 anos vem do atendimento de suas necessidades atuais, e não da preparação para o futuro.

Para iniciar este artigo, cuja meta é analisar aspectos referentes à educação matemática na escola infantil, trago um pequeno diálogo entre Sofia, de 4 anos, e sua família. A brincadeira da vez, proposta pela menina, era desafiar os adultos com contas: quanto é 2 + 2 + 3? Quanto é 3 + 4 + 5? Os adultos respondiam a uma pergunta e propunham outra do mesmo tipo. A pequena parava, pensava, fazia caretas, olhava os dedos, mas resolvia todas. Em certo momento, ela decidiu propor contas difíceis e perguntou: “Quanto é 11 + 12?”. Uma das pessoas perguntou: “Mas você sabe quanto é 11 + 12?”. Ao que ela respondeu: “Não, né? Eu só perguntei. Precisa de muitos dedos para calcular!”.

O que leva uma criança dessa idade a se divertir propondo contas para os adultos? O que uma criança precisa saber para enfrentar situações desse tipo e decidir se vai ou não resolver os desafios propostos? Como conseguir despertar e manter o desejo de saber matemática?
Já vai longe o tempo em que ensinar matemática na educação infantil confundia-se com atividades de seriação, classificação e sequenciação. Também não faz mais sentido o trabalho centrado em preencher folhinhas com números ou marcar quantidades de objetos de um conjunto em um quadradinho.

Para entender o interesse de Sofia, não basta considerar o ambiente familiar, nem tampouco que seja talento natural. Estudos de neurociências indicam que as crianças têm capacidades matemáticas características da genética da espécie, o que lhes permite desenvolver algum conhecimento matemático antes da escolarização. No entanto, cabe à escola atuar para a evolução do saber inicial, por meio de um ambiente problematizador, que favoreça o desenvolvimento de novos conhecimentos matemáticos.

Na educação infantil, a aprendizagem matemática se dá a partir da curiosidade e do entusiasmo das crianças e cresce em função do tipo de experiências vivenciadas nas aulas. Experiências desafiadoras incentivam a explorar ideias, levantar e testar hipóteses, construir argumentos de maneira cada vez mais sofisticada.

Contudo, a despeito de haver muita matemática ao redor dos alunos, nem sempre as ideias matemáticas aparecem por sorte ou espontaneamente. Elas são elaboradas ao longo do tempo, estruturando-se na criança e organizando-se em uma rede de relações construídas todos os dias, com aulas bem planejadas pelo professor.

A segurança de Sofia indica que ela tem liberdade de pensamento e, ao mesmo tempo, conhecimento matemático que permite viver e propor desafios. Forma e conteúdo estão em jogo para que uma criança aprenda matemática. Todos os conteúdos matemáticos que as crianças precisam aprender situam-se em um de quatro grandes eixos articuladores:

1.        conhecimento dos números, dos seus significados e das operações entre eles;

2.        conhecimento de formas geométricas, localização espacial e desenvolvimento corporal;

3.        conhecimento das principais grandezas e medidas;

4.        interpretação e organização de dados a partir dos primeiros contatos com o tratamento da informação.

Cada um desses eixos, se abordados desde a educação infantil, contribuirá para que a criança adquira novas formas de interpretar, ser e estar no mundo, lentes novas para ver seu entorno com maior criticidade. A matemática na educação infantil integra a primeira fase de um ciclo de alfabetização, o qual serve para ampliar na criança as capacidades de analisar, comparar, observar, tomar decisões, tirar conclusões, propor e resolver problemas.

Uma das maiores conquistas que a escola pode auxiliar os alunos a ter é o conhecimento da linguagem matemática. Por isso, é necessário cuidado para que a linguagem matemática seja percebida como forma de comunicação. Essa linguagem, a princípio, é a linguagem materna. Aos poucos, a escola auxiliará a criança a perceber que a linguagem matemática também consiste em um código formado por símbolos e signos específicos como aqueles usados para números, operações, gráficos e representações geométricas.

Assim, é importante que os alunos da educação infantil sejam expostos a um contexto de aula no qual ouvir, ler, falar e escrever em matemática sejam não apenas estimulados, mas parte indissociável do ambiente educativo para que os alunos percebam a matemática e sua linguagem como modo de integrar-se ao meio e de ter acesso à informação que elas proporcionam.

Vale destacar que, dos 4 aos 6 anos, há hipóteses de construção da linguagem matemática e os alunos fazem suas produções por tentativa e erro, por aproximação de um modo que, grosseiramente falando, aproxima-se do que acontece com a linguagem escrita. Estudos como os de Dehaene e colaboradores (2004) indicam que os processos linguísticos são importantes no processamento simbólico e destacam o papel do domínio do significado e dos símbolos matemáticos — e, consequentemente, da instrução formal — na estruturação da compreensão da matemática pelos alunos.

Outro ponto importante da educação matemática na infância é a liberdade para a criança pensar por si e ter ideias. Aos 4 anos, Sofia mostra que tem o hábito de desafiar e ser desafiada. Isso indica que convive com a ideia de que algumas vezes resolve os desafios propostos, outras não, e que pode enfrentar uma situação desafiadora por distintos caminhos. Favorecer o intercâmbio de ideias entre os alunos permite que avancem na linguagem e nas formas de representação, deixando fluir seus sentimentos para uma boa aprendizagem matemática, criando a sensação de poder aprender e pensar em matemática.

Os educadores devem ter em mente que todo o trabalho realizado com conteúdos matemáticos não pode ser ocasional ou fortuito; as propostas têm de ser múltiplas, variadas e relacionadas com a linguagem, as expressões e a formação sociopessoal do aluno (Smole, 2000). O papel do adulto é selecionar e planejar situações de aprendizagem que se ajustem às necessidades das crianças, bem como propor atividades adequadas, ajudar os alunos em suas buscas, perguntar-lhes por aquilo que tenham visto, pensado, imaginado, experimentado ou descoberto e refletir junto com eles para ajudá-los a atribuir sentido matemático às experiências vividas.

Tendo em vista que os alunos da educação infantil estão em uma fase lúdica, na qual brincar é um direito legítimo e uma maneira de desenvolver-se amplamente, as aulas de matemática precisam ter espaço para jogos, brincadeiras, histórias, fábulas, problemas, experimentos e tantas outras atividades que compõem o universo infantil. Em seus estudos de neurociências e matemática, Whyte e Bull (2008) demonstram que as crianças que jogam compreendem melhor o universo dos números.

Precisamos desfazer o mal-entendido de que na educação infantil praticamos uma matemática simplista, muito elementar, sem propor situações mais desafiadoras, e também nos desfazer da ideia de que primeiro os alunos aprendem a ler e escrever para depois explorar situações mais complexas de matemática. Se fosse assim, não precisaríamos da escola.

A matemática na educação infantil que proponho é parte indissociável do todo que entendo como educação matemática e apresenta pontos em comum com o que os alunos precisam aprender posteriormente. A manutenção do desejo e do interesse por matemática entre alunos de 4 e 5 anos vem do atendimento de suas necessidades atuais, e não de uma matemática que seja vista prioritariamente como preparação para o futuro.


 

ALFABETIZAÇÃO COM NÚMEROS


ALFABETIZAÇÃO COM OS NÚMEROS

Por Antonio José Lopes Bigode*

O ano de 2014 vai ficar marcado na comunidade de educadores de todo o País como o ano de lançamento do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa, o Pnaic, um programa federal de alfabetização matemática. Muitos podem estar se perguntando o que alfabetização tem a ver com matemática. Essa questão vem sendo discutida pela comunidade de educadores matemáticos há pelo menos três décadas e é consensual entre especialistas que a matemática seja importante instrumento de leitura e intervenção no mundo em que vivemos. Na sociedade atual, ler e escrever com compreensão inclui ler o mundo com lentes matemáticas.

O foco do Pnaic-Matemática é a aprendizagem significativa e o ensino por meio de atividades e situações-problema, sua concepção e desenho levou em conta o que sabemos sobre processos de aprendizagem, metodologias e experiências didáticas. O material do Pnaic aborda vários temas fundamentais: organização do trabalho pedagógico; quantificação, registros e agrupamentos; construção do sistema de numeração decimal; operações na resolução de problemas; geometria; grandezas e medidas; educação estatística; saberes matemáticos e outros campos do saber. Esse último tratando das relações da disciplina com a realidade e as conexões matemáticas que é uma tendência mundial do ensino da matemática. Seu ponto de partida é o que as crianças de 6 anos podem e devem aprender nas séries iniciais e o que elas já sabem e podem aprender da matéria nessa idade.

Alguém tem dúvida de que as crianças já tiveram alguma experiência matemática antes de entrar na escola? Certamente, já tiveram inúmeras experiências matemáticas, quantificando ou observando as formas de suas coisas, nas brincadeiras de que participa, nas suas rotinas, antes mesmo que um professor ou professora as ensinasse. E que experiências são essas e por que é importante sabê-las?

É quase consensual entre os educadores a importância de considerar os conhecimentos prévios das crianças e utilizá-los para que elas organizem e aprofundem o que sabem, mesmo que de modo informal, para adquirir novos conhecimentos. Há vários estudos que descrevem situações e atividades em que as crianças mostram-se capazes de aprender sozinhas ou na interação com outras crianças, sob a orientação de um adulto, a professora, a avó ou a tia.

Crianças são observadoras e fazem relações, de natureza lógica, mesmo quando estão distraídas ou entretidas com suas coisas. Maria Antònia Canals, renomada educadora de Barcelona, descreve muitas histórias curiosas sobre crianças fazendo e descobrindo matemática. Em uma delas, um pai e sua filha estão brincando com uma bola na sala de casa, com a janela aberta por onde entrava a luz do sol, de repente a criança fica parada olhando fixamente para a bola e o pai pergunta “o que está olhando? O que tem a bola?” A menina aponta para a bola e sua sombra e diz “olhe, papai, a bola fez um ovo”, o pai como um educador intuitivo, não perdeu a oportunidade de “brincar” com a filha sobre o formato de outras sombras, fazendo-a experimentar posições de objetos da casa, cuja sombra aumentava ou diminuía.

Em outro episódio, duas crianças de 5 e 6 anos ganharam dois saquinhos com animais de fazenda e cerquinhas. Cada criança ganhou um conjunto, e chegando em casa elas juntaram todos os animais e passaram a brincar fazendo cercados com bichos do mesmo tipo: “Um cercado para as galinhas”, “um para as vaquinhas” e “um para os porquinhos”. Ainda havia animais para serem cercados, mas só restavam duas cerquinhas, que o filho mais velho entregou ao pai... “Tó, não dá para fazer cerca”. Naquele momento, embora ele nunca tivesse aprendido o significado de polígono, intuitivamente pensou algo muito próximo da definição formal, como a ideia de que para que uma figura fechada e limitada por segmentos de reta seja um polígono, deve ter no mínimo três lados.

As crianças aprendem coisas desse modo, observando, explorando e enfrentando situações-problema, mesmo que essas situações não sejam explícitas. Um estudo de viés antropológico feito pelo pesquisador inglês Alan Bishop listou seis tipos de atividades presentes em quaisquer culturas relacionadas às ideias e processos de natureza matemática: contar, localizar, medir, desenhar, jogar e explicar.

As crianças brincam e jogam em situações variadas de suas vidas, muitas brincadeiras envolvem procedimentos de: contagem, medição, orientação, visualização de quantidades etc. Crianças pensam logicamente ante situações do cotidiano. Isso ocorre, por exemplo, quando elas praticam jogos com regras ou quando organizam coisas por atributos: coisas pessoais como roupas e brinquedos e coisas da casa como talheres, pratos e guardanapos. Ao se apropriarem de um modo de organização, mesmo que induzido pelos adultos, elas estão aceitando e incorporando princípios de natureza lógica.

Crianças também gostam de contar, muitas vezes só para dizer que sabem contar. Porém, em muitos casos, elas apenas cantam e não contam. Quando muito pequenas as crianças cantam uma canção que tem a seguinte letra “um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove e dez”, mas isso pode ser apenas uma “cantagem” e não uma contagem. Nas primeiras contagens as crianças estão apenas imitando os adultos, mas em algum momento elas têm de ir além e se apropriar dos princípios da numeração, suas relações e propriedades. E é aí que a escola desempenha papel importante, pois para adquirir o conceito de número além de aprender a contar, devem aprender a seriar, fazer correspondências, classificar, nomear, simbolizar e agrupar. Algumas dessas ações podem aparecer espontaneamente em atividades ou brincadeiras, mas relacionar todas essas ações é algo que a escola deve se preocupar e propiciar às crianças. Quanto às operações, o que pais e professores devem ter atenção é em quais situações do universo da criança faz sentido somar ou subtrair dois números. Certamente um ensino baseado na prescrição de regras para fazer contas, como no tempo de nossos avós, não é adequado e com muita probabilidade, pouco interessante, desafiador e significativo.

No cenário da escola do século XXI, para oferecer às crianças de nosso tempo oportunidades de aprender ideias matemáticas e desenvolverem competências para enfrentar problemas novos e fazerem descobertas por si, vale resgatar as ideias de Hans Freudenthal (1905-1990), criador das bases da Educação Matemática Realística, baseada na resolução de problemas reais, e significativos a partir de experiências cotidianas em lugar de regras de matemática abstratas e divorciadas da realidade vivencial ou cognitiva dos estudantes. Freudenthal sempre advogou que a “matemática é uma atividade humana” e defendeu que a melhor forma de aprender uma atividade é praticá-la, por meio de atividades lúdicas e desafiadoras o que contribui para que os alunos se interessem pela matemática propriamente dita, adquirindo hábitos de pensar matematicamente diante de situações diversas e extraescolares.

O objetivo principal do ensino da matemática é desenvolver o pensamento matemático dos estudantes, para que sejam capazes e estejam aptos a enfrentar e resolver problemas. Porém, muitos acreditam que o pensamento matemático é próprio de apenas alguns indivíduos especiais, “muuuito inteligentes” ou de pessoas que sabem utilizar fórmulas complicadas. Trata-se, é claro, de uma crença perigosa e que pode levar a erros pedagógicos sérios. O raciocínio matemático pode estar em situações simples, em que as crianças se sentem encorajadas a colocar as coisas em relação.

Considere um problema aparentemente muito simples e desprovido de qualquer desafio: Um desenho em que 11 mãos são mostradas atrás de uma cerca cada uma com uma quantidade de dedos levantados. Quantas crianças você acha que estão atrás da cerca? Se você contou as mãos levantadas e disse 11, provavelmente acertou, depende do que estava pensando. Qualquer um poderia responder isto, bastava contar as mãos levantadas. Qual é o desafio? Em um grupo de crianças de 7 anos, uma delas arriscou “Mas e se...?”

– E se uma criança estiver com duas mãos levantadas?

A pergunta realça o pensamento mais flexível ou formatado da criança. A resposta para seu novo problema é dez. Tal interpretação levou a problematizar e formular novas questões: “Mas e se duas crianças estiverem com as mãos levantadas ?”, “e se forem três com as mãos para cima ?”, “Mas e se ... ?”

Eis aí um exemplo de como é possível fazer matemática com as crianças. São contextos como esses que contribuem para que as crianças sejam capazes de formular questões, e concluir que o número mínimo de crianças atrás da cerca é seis, situação extrema em que cinco crianças estão com as duas mãos levantadas e apenas uma está com uma única mão para o alto. É um indicador de que as crianças são capazes de responder e argumentar mesmo sem saber regras formais, como 5 x 2 + 1 = 11.

O presente e o futuro da uma educação matemática está numa escola mais arejada, dinâmica, problematizadora, em que as crianças são sujeitos, individuozinhos, matematicamente pensantes. O combustível principal são os problemas autênticos e desafiadores, nas situações contextualizadas, realistas e significativas.


*Consultor do MEC e de SEEs, autor de livros didáticos e de metodologia e da série Matemática em Toda Parte, da TV Escola/MEC, Unesco

 

A BRINCADEIRA É LIVRE!


A brincadeira é livre!

Não faz sentido empregá-la com objetivos pedagógicos, tampouco o brincar deve se limitar à escola

//Por Por Marcos Garcia Neira*

Há quem diga que brincar é uma prática exclusiva das crianças. Puro engano. A brincadeira também é uma atividade comum entre os adultos. Quantas vezes não ouvimos alguém se desculpar, dizendo: “Estou só brincando” ou “foi de brincadeira”. Além disso, conforme indicam estudos recentes, o hábito de brincar tem crescido entre homens e mulheres, que, por mera distração ou de modo consciente, preenchem as horas vagas brincando nos videogames, computadores, celulares ou smartphones.

Brincar foi uma prática bastante presente entre os adultos até a Revolução Industrial, ocasião em que as pessoas, controladas, confinadas e com um tempo cada vez menor para descansar, viram-se obrigadas a abandonar essa prática cultural, que perdeu seu status e passou a ser vista como perda de tempo. Não por acaso, na mesma época, a infância foi tomada como fase preparatória e as crianças foram definitivamente segregadas das ocupações dos adultos.

Num primeiro momento esses significados circularam entre a burguesia urbana e, mais tarde, se estenderam aos demais setores da população. Obter o sustento por meio do trabalho tornou-se uma incumbência dos adultos, enquanto as crianças, restritas ao ambiente doméstico, passaram a brincar com objetos ou situações que simulavam as obrigações laborais. A brincadeira transformou-se em um modo de iniciar as novas gerações no conjunto de regras da sociedade mais ampla. As meninas recorriam às brincadeiras de mamãe e bebê, já os meninos brincavam de cavalgar e guerrear.

Um dos reflexos dessas transformações é facilmente percebido na história do brinquedo. Até o século XVIII, eram construídos com o que sobrava das carpintarias, oficinas e fabricantes de velas e compartilhados entre adultos e crianças. O capitalismo viu na produção em massa um meio de aumentar seus lucros, mudando completamente a cultura lúdica. Brinquedos foram inventados e produzidos aos milhares. Alienadas do processo de criação, as crianças foram transformadas em simples consumidoras.

A oferta de brinquedos padronizados reserva ao mercado o controle das suas características e intenções. Para ficar apenas em um exemplo, pensemos por um minuto no conhecido “Banco Imobiliário”. Que representações veicula? Quais valores as crianças aprendem, enquanto adquirem propriedades imaginárias? O que significa relacionar a vitória ao acúmulo de bens?

Sabemos que durante a brincadeira o sujeito constrói simbolicamente a realidade e recria o existente. Não é apenas receptor do que acontece à sua volta. Ele ressignifica o que vê, ouve e experimenta mediante o confronto entre os elementos que acessa e o próprio patrimônio cultural. Sabemos que nem tudo é assimilado imediatamente, também há resistência, negociação e reelaboração.

A questão é que a brincadeira criativa e imaginária, enquanto forma infantil de conhecer o mundo, vem sendo ameaçada pelas representações disseminadas pelas mídias. Os bonecos de super-heróis ou os video-games inspirados em produções televisivas demonstram que os significados do brincar são pautados externamente.

A brincadeira é um fenômeno cultural que sintetiza os valores do grupo no qual se desenvolve. É impossível apontar claramente onde, quando e como ela surgiu. O certo é que pode ser encontrada em todos os grupos sociais. Sua essência é a espontaneidade e, seu teor, a liberdade. A brincadeira não se prende a amarras de nenhum tipo, inicia e termina quando seus participantes assim o desejam. Tampouco resiste a imposições externas, pois os modos de brincar podem ser criados e recriados a qualquer momento.

Tais pressupostos obrigam a rever o papel que algumas escolas atribuem às brincadeiras. Não faz o menor sentido empregá-las com objetivos pedagógicos, isto é, como estratégia para alcançar comportamentos desejáveis. Brincar é uma atividade livre marcada por divertimento e alegria. Qualquer tentativa de torná-la um “meio de ensino” eliminará seu aspecto lúdico. Nesse caso, não será a criança a tomar a iniciativa do brincar. Sem a livre escolha e sem a possibilidade real de decidir, não há brincadeira, pois o papel do brincante é ocupado pelo professor que definiu os passos a serem dados.

Ademais, se a iniciativa da brincadeira for exterior, a criança, provavelmente, ficará inibida, comprometendo o desenrolar das ações. Nem toda brincadeira agrada aos infantes. Para que exista a liberdade do brincar, eles devem poder recusar o que foi proposto ou escolher o que preferem. É preciso considerar que o prazer no brincar depende do contexto cultural. Mas isso não significa que os sujeitos não aprendam enquanto brincam.

Brincar pressupõe uma aprendizagem social. Aprendem-se formas, vocabulário típico, regras, modos de atuar coerentes etc. É importante frisar que a transmissão de um elemento cultural depende do contexto. A cultura da brincadeira é um evento coletivo. Mantém-se e é transmitida por um grupo que se autorregula, possui identificação própria e modo de organização específico. Logo, a configuração social é essencial para compreender como e quais brincadeiras são transmitidas. Grupos numerosos certamente possuem brincadeiras diferentes daquelas praticadas com poucas pessoas. Regiões frias permitem brincar de maneiras distintas daquelas que podem ser encontradas nas localidades mais quentes.

Durante a apropriação, a cultura patrimonial exerce um papel determinante na perpetuação do universo lúdico. Consequentemente, é na família, sobretudo com os adultos, que as crianças aprendem a brincar. Em praticamente todas as sociedades, as normas, habilidades e conceitos que fundamentam as brincadeiras são partilhados inicialmente entre membros que possuem laços parentais, onde há brincantes mais e menos experientes.

A maioria das famílias possui suas próprias brincadeiras. Não é exagero dizer que passam “de pai para filho” ou, no mínimo, dos mais velhos para os mais novos. Algumas atividades lúdicas permanecem durante muitos anos no ambiente doméstico, outras sobrevivem apenas durante o período da infância. À medida que as crianças crescem, as formas de brincar sofrem alterações. Quando bem pequenas, são socializadas em brincadeiras pautadas na repetição de gestos, músicas e enredos. Já maiores, com a ampliação dos recursos de interação e diversificação das experiências culturais, o repertório de brincadeiras aumenta.

No núcleo familiar, nem sempre os elementos básicos de transmissão da cultura lúdica são cumpridos à risca: objetivos, técnicas, regras, quantidade de participantes, funções, nível de habilidade, ambiente e materiais necessários. Inúmeras adaptações são empregadas para garantir a ocorrência da brincadeira. O afrouxamento das regras, por exemplo, é uma estratégia que viabiliza a participação dos menores.

A forma como o parente mais experiente lida com o aprendiz facilita a apropriação dos modos de brincar. Comumente, o auxílio facilita o desfrute pleno da brincadeira. Em linhas gerais, aprender a brincar só é possível quando os mais hábeis assim o permitem. A posição assumida pelo adulto-conhecedor tende a ser mais ativa, dando direção à brincadeira, arbitrando, indicando erros. A criança-aprendiz é costumeiramente mais passiva, observando, esperando a decisão, ajudando. Todavia, quando se considera a dinâmica da apreensão da cultura lúdica, a passividade infantil nada mais é do que uma estratégia para aceitação e pertencimento, um modo sofisticado de se apropriar das práticas familiares, a fim de fortalecer a própria identidade cultural.

*Professor da Faculdade de Educação da USP e coordenador do Grupo de Pesquisas em Educação Física Escolar

Saiba mais

Livros

Brincadeira e Cultura: Viajando pelo Brasil que brinca, de Ana M.A. Carvalho, Celina M.C. Magalhães; Fernando A.R. Pontes; Ilka D. Bichara (orgs.) São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.

Práticas Corporais: Brincadeiras, danças, lutas, esportes e ginásticas, de Marcos Garcia Neira. São Paulo: Melhoramentos, 2014. (no prelo).

Publicado na edição 60, de agosto de 2014